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A criança não existe

Ascom

Publicado no Jornal Estado de Minas no dia 16/07/2000

O aforismo de Lacan “a mulher não existe”, provocou muita inquietação e indignação. Por outro lado, fez com que o pensamento contemporâneo pudesse dar à mulher um estatuto de sujeito, a partir dessa negação. Da mesma forma, e neste sentido, infelizmente, podemos dizer que a criança não existe. Ela, como o índio, os loucos, os velhos, não é uma engrenagem da máquina política, mesmo nos regimes que se anunciam democráticos. Criança não dá voto; pelo menos não dava. Talvez um discurso “politicamente correto” sobre a infância e juventude possa fazer com que ela entre nessa engrenagem e no jogo dos interesses políticos. Talvez alguém possa até tirar vantagem de um novo discurso sobre a infância, embora até hoje nem mesmo para isto o estatuto da infância no Brasil tem servido.

Tendo passado dez anos da publicação da Lei 8.069 de 13/7/90, mais conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é realmente importante fazer uma reflexão, balanço e perspectiva. “Se muito vale o já feito, mais vale o que será”.

Como texto normativo, o ECA é reconhecido como um dos mais avançados do mundo e tornou-se uma referência internacional. Tem sido modelo de inspiração para quase todos os países da América Latina. Na França, há livro comentando nossa avançada e exemplar lei. Ele é fruto de uma longa, democrática e interdisciplinar discussão no Congresso Nacional e, portanto, não vem de uma visão unilateral do legislador. Ninguém contesta que é avançada. Aliás, tão avançada, que se torna, às vezes, incompreendida até mesmo por alguns juristas que, em uma visão apressada e empobrecida, ainda têm saudade do sepultado Código de Menores. Há até mesmo quem afirme que as crianças de rua aumentaram por culpa do ECA.

Por outro lado, e paradoxalmente, o conteúdo político dessa moderna lei ainda não se efetivou de maneira satisfatória e condizente com a necessidade de milhares de crianças abandonadas e pobres no Brasil. O governo federal, tentando desculpar-se por isto, justifica que o problema é secular, e, portanto, uma década é pouco para a implementação de uma política mais eficaz.

E assim se passaram dez anos. As crianças, além de abandonadas pelos pais biológicos e desacompanhas psiquicamente, continuam abandonadas pelo Estado. Em outras palavras, a infância e juventude como prioridade absoluta, como reza o ECA, ainda não se efetivou e continua no papel apenas como um ideal. É incompreensível a melancólica incapacidade e o descaso do Estado com questões tão importantes. Aliás, são mais que importante. O desamparo e o abandono paterno são elementos fundamentais na estrutura psíquica do ser humano.

Um balanço e a reflexão acerca destas questões não se podem tornar um muro das lamentações. Há muito, muito ainda por fazer na implementação do ECA, embora muito já se tenha implementado. Não podemos é ser ingênuos em acreditar que um texto legislativo venha resolver o abandono material e psíquico de milhares de crianças. Mas uma coisa é certa e podemos bendizer: esta lei veio fazer uma mudança profunda na concepção política paradigmática do tratamento das questões sobre a infância e juventude no Brasil. Uma delas, e talvez esteja aí a chave da revolução que se está fazendo pela via de um texto jurídico, é a compreensão mais profunda do conceito de família ao considerá-la como um fato da cultura e não somente da natureza. Com isto, desbiologiza-se a paternidade e podemos pensar em famílias substitutas, na verdadeira paternidade, e na obrigação do Estado de dar algum amparo a estas crianças abandonadas; pois sem o exercício dessa função paterna, a desestruturação do sujeito é inevitável. E a conseqüência desse desamparo e dessa desestruturação psíquica, em razão da falta do pai ou do Estado-Pater, já sabemos que são indicativos da delinqüência e de grande parte da violência produzida nas cidades. A grande virada feita pelo ECA, e que lamentavelmente o Estado resiste em compreender, é que, como um tratado de Direitos Humanos, ele mudou a máquina e a concepção de socializar crianças, outorgando-lhes o fundamental de suas vidas: um estatuto de sujeito.

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