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Direito e sexualidade

Ascom

Publicado no Jornal Estado de Minas no dia 10/9/1997

A lei básica e estruturadora das relações sociais, ou a primeira lei de qualquer organização social, é uma Lei de Direito de Família: a interdição do incesto. Sem este “interdito proibitório” não seria possível qualquer organização social, pois é somente a partir desta interdição (proibição) que alguém pode tornar-se sujeito. É com esta interdição-primeira que se faz possível a passagem do estado de natureza para a cultura.

A interdição do incesto está prevista em todos os ordenamentos jurídicos, embora antes de estar escrito, ele esteja inscrito no homem como condição fundante de qualquer organização social e jurídica. No Brasil, esta proibição está prevista no art. 183, I, II, III e IV do Código Civil. Isto significa, para nós brasileiros, que incesto é o casamento, ou relação sexual, entre ascendentes e descendentes, entre parentes, afins em linha reta, adotante e adotado e entre irmãos. Em outros ordenamentos jurídicos e outras culturas há variações destas proibições. Mas, por mais que variem as formas de proibição do incesto, há sempre uma proibição. Como se disse, a possibilidade da existência de qualquer cultura está em uma proibição primeva que é sempre da ordem da sexualidade. Os gregos, que explicavam o mundo através da construção dos mitos, inscreveram em sua cultura a questão do incesto pelo mito de Édipo. Freud, utilizando-se deste mito grego, constituiu sua teoria do complexo-de-édipo, onde demonstra os desejos inconscientes das relações que são proibidas. Também em seu texto “Totem e Tabu” (1913-1914) descreve a origem das proibições sexuais, demonstrando, como Gilberto Freyre em “Casa Grande e Senzala”, que por mais primitiva que seja a sociedade, há sempre uma proibição sexual a que chamamos de “tabu do incesto”.

Se a lei básica da família tem sua origem em uma proibição sexual, consequentemente toda a organização jurídica sobre ela gira em torno da sexualidade. Portanto, falar de Direito de Família é falar de sexualidade. Por exemplo, o livro de Direito de Família inserido no Código Civil Brasileiro(1916) é uma lei para organizar a família com base nos princípios da moral sexual vigente do início do século. É também uma tentativa (forma) de controle do Estado sobre a sexualidade. Desta forma é que o Estado autorizava,ou não, as relações sexuais, impingindo a marca de legítima àquelas que se constituíssem pelo casamento civil. Era somente através deste selo de oficialidade que se constituía a família. Somando-se à influência do Direito Canônico, era o mesmo que dizer que relação sexual só é permitida dentro do casamento, pois ilegítimas eram todas as relações sexuais que se constituíssem fora do casamento. Obviamente que esta “regra”, na prática, era só para as mulheres. Os homens, ao contrário, e de preferência, deveriam burlar a lei neste sentido. Aliás, a “permissão” da cultura para as relações sexuais masculinas não era apenas que fossem antes do casamento como também das relações extraconjugais. Por mais contraditório que isto possa parecer, sempre significou um enaltecimento à masculinidade.

Com o movimento feminista e a mudança de costumes, o Direito de Família está passando por profundas modificações. A Constituição de 1988 alterou radicalmente a organização jurídica da família brasileira ao dizer que existem outras formas de constituição de família (art. 226) além daquela constituída pelo casamento. Portanto, a partir do momento em que o Estado reconhece outras formas de família, ele está conseqüentemente autorizando que relações sexuais não sejam exclusivas, ou privilégio, do casamento civil. É claro que o Direito veio autorizar isto com relativo atraso, pois grande parte da população já não seguia a lei do “sexo legítimo” e já estabeleciam relações sexuais independentemente do casamento.

Apesar de todas as tentativas do Estado de um controle rígido sobre as formas de sexualidade, legitimando ou marginalizando, elas sempre escaparão, pois são da ordem do desejo e o desejo é, muitas vezes, da ordem do inconsciente. Isto não significa desinstalar princípios morais ou regras de convivência em sociedade ou mesmo incentivar uma possível promiscuidade. O Direito de Família, por mais que mudem os costumes sexuais de uma sociedade, intervirá sempre, no sentido de organizar as relações a partir de princípios básicos já consagrados no Direito e na cultura ocidental, como por exemplo, a monogamia.

O importante para que o Direito de Família possa evoluir, estar em dia com o sentido mais profundo que a tentativa de legislar, e consequentemente organizar, no fundo, traduz a sustentação de alguns princípios básicos que são da ordem da sexualidade. Para cumprir melhor esta função, o Direito precisa, então, e também, apreender conceitos sobre a sexualidade e principalmente entender que esta, antes de ser da ordem da genitalidade, como sempre foi considerada, é, antes de tudo, da ordem do Desejo.

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