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Paternidade desbiologizada

Ascom

Publicado no Jornal Folha de São Paulo no dia 18/10/1997

A Constituição brasileira de 1988 desencadeou uma grande reforma do direito de família a partir da mudança de três eixos básicos: homens e mulheres são iguais perante a lei; o Estado passou a reconhecer outras formas de família além daquela constituída pelo casamento; e alterou o sistema de filiação, igualizando os filhos havidos no casamento e fora dele, proibindo designações discriminatórias (art. 226).

Em relação à filiação, veio corrigir algumas injustiças pelas quais os filhos fora do casamento é quem acabavam pagando. Por exemplo, até 1988, os nascidos de uma relação extraconjugal não podiam ser registrados com o nome do pai, mesmo que este quisesse. Isso em nome da moral e bons costumes, pois se considerava que esse registro era uma afronta às famílias.

Na verdade, era uma hipocrisia jurídica que sempre esteve a serviço de ocultar uma realidade e uma falsa moralidade. O filho existia no mundo real, mas não existia no mundo jurídico, já que não podia ser registrado em cartório com o nome do pai. Até mesmo as ações de investigação de paternidade eram proibidas, a não ser que fossem exclusivamente para fins de busca de pensão alimentícia.

É claro que a Constituição de 1988 não veio acabar com os filhos extraconjugais. Teria sido muito pretensiosa se assim tivesse estabelecido. Sabemos todos que, enquanto houver desejo sobre a face da Terra, continuarão nascendo filhos de relações extraconjugais de pais não-casados ou solteiros e de “produções independentes”.

A modificação constitucional visa proibir designações discriminatórias e torna iguais os direitos de todos os filhos.
Assim, desde 1988 não se pode mais, no campo jurídico, nomear os filhos como legítimos ou ilegítimos, naturais, espúrios ou adotivos. Filho é filho, e não comporta mais nenhuma adjetivação.

No final de 1992, a lei 8.560 também tentou intervir no campo da filiação e paternidade. Estabeleceu que o Estado deverá promover a investigação de paternidade de todos os filhos que não tiveram em seu registro de nascimento o nome do pai.

Foi uma bem-intencionada tentativa de dar pai a quem não tem. Afinal, os filhos foram gerados por uma mãe e tiveram, necessariamente, a participação de um pai.

Atualmente, talvez seja mais exato dizer que a participação masculina necessária prende-se apenas ao fornecimento do espermatozóide; a partir da possibilidade das inseminações artificiais, não mais se faz necessária a relação sexual para procriação.

O direito brasileiro já deveria ter entendido que, por mais que se queira atribuir uma paternidade pela via do laço biológico, ele jamais conseguirá impor que o genitor se torne o pai. O alcance dessa investigação limita-se, como já estabeleceu a lei francesa (1972), a fins de subsídios.

Com isso, podemos entender que a Constituição de 1988, ao interferir no sistema de filiação, está a um passo do entendimento da paternidade em seu sentido mais profundo e real. Ela está acima dos laços sanguíneos. Um pai, mesmo biológico, se não adotar um filho, jamais será o pai. Por isso, podemos dizer que a verdadeira paternidade é adotiva e está ligada à escolha – enfim, ao desejo.

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