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Instituição da poligamia?

Ascom

Publicado no Jornal Estado de Minas no dia 25/5/1996

Foi publicada no Diário Oficial da União (13.05.96) a Lei 9.278, que vem, mais uma vez, tentar regulamentar as relações concubinárias. Esta lei tem sua origem no projeto nº 1.888 de 1991, da deputada do PDT-AM, Bete Azize. Após anos em tramitação, o projeto original sofreu emendas, substitutivos e finalmente foi aprovado, com alguns vetos, pelo presidente Fernando Henrique Cardoso.

A nova lei, como um sintoma, reflete a desorganização do Congresso e do próprio presidente da República, aprovando um projeto desconexo com a recente Lei 8.971/94, que tratou sobre o mesmo assunto. Ela repete erros, incorporações e incoerências com alguns institutos de Direito e Família. Instalou-se, então, uma confusão jurídica que os tribunais, certamente, levarão anos para desfazer.

O artigo 1º já começa instalando polêmica quando define o que vem a ser união estável, termo substituto do estigmatizante “concubinato”: “É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de família”. Ao contrário da lei anterior (8.971/94), não deixa claro se os sujeitos dessa relação devem ser desimpedidos, ou seja, deixa em aberto o entendimento de que até pessoas casadas podem receber proteção do Estado para constituição dessas uniões.Neste sentido, seria a admissão da poligamia em nosso ordenamento jurídico. A confusão aumenta quando o art. 2º suprime, de seu projeto original, a expressão “fidelidade”, por “respeito e consideração mútuos”. Ora, será que essa expressão pressupõe fidelidade? Com isto há margem para se pensar que a fidelidade não é pressuposto para a união estável, embora seja para o casamento.

Em alguns aspectos, repete a lei 8.971/94 (art. 7º), em outros, complementa (art. 5º, 9º…), e, em outros, contraria (art. 1º). A lei 8.971 de 29.12.94, que trata do mesmo assunto, a lei 9.278/96, ao contrário do que se imagina e apregoa, vem também cercear a liberdade dos sujeitos na escolha do tipo de relação amorosa. Agora, mesmo não querendo, esses sujeitos receberão ditatorialmente, do Estado, as regras de sua relação-convivência amorosa.

Não obstante estes senões, a nova lei, em seu espírito, é bem intencionada. O bom espírito (cf. Montesquieu in O Espírito das Leis), bastante louvável, é o de corrigir e evitar injustiças. Pena que não soube traduzir direito esta boa intenção.
Apesar da confusão jurídica que vem instalar – e suas imprecisões técnicas – ela tem o grande mérito de derrubar a resistência dos tribunais em reconhecer este assunto como Família. Traz avanço: transfere de vez, acabando com a polêmica e as resistências, a matéria relativa ao concubinato – união estável, do campo do Direito das Obrigações para o Direito de Família. Agora há o reconhecimento expresso do Estado, de que estas relações são de família, e como tal devem ser tratadas. No mais, como tudo sobre este assunto, e em razão do paradoxo que traz em sua essência, é e será, sempre, polêmico. É que sua contradição básica está em instituir algo que não quer ou não deve se instituir. Afinal, como fica a liberdade dos sujeitos que não querem a intervenção do Estado ou que lhes sejam impostas regras para a relação amorosa? No momento em que a família tende para a privatização, vem o Estado impor regras para relações que exatamente querem fugir delas.
Código Civil já nasce velho

Tramita “silencioso” no Congresso, desde 1995, o projeto do Código Civil Brasileiro que, se aprovado, virá substituir o de 1916. A idéia de elaboração de um novo Código Civil data de 1961, governo Jânio Quadros, cujo anteprojeto foi confiado a Orlando Gomes.

Mesmo com a renúncia do presidente, a idéia foi adiante. Em 1963, com a colaboração do então ministro Orozimbo Nonato e do professor Caio Mário da Silva Pereira, foi entregue ao ministro da Justiça Milton Campos o resultado do árduo trabalho. O projeto “empacou”.

Em 1969, tentou-se reerguê-lo. Em comissão formada por Miguel Reale, José Carlos Moreira Alves e outros, elaborou-se um novo anteprojeto, só apresentado em 1975. Esse projeto foi aprovado sem emendas pela Câmara dos Deputados e remetido ao Senado em 1984. Aí, foram apresentadas 360 emendas, e em 1991 estava arquivado.

Em 1995, reativado o projeto do Código Civil, foi nomeado o senador Josaphat Marinho como relator-geral. Assim, tramita no Congresso o novo projeto do Código Civil Brasileiro. Feitas algumas modificações, a sua estrutura é a mesma daquele apresentado em 1961-63.

Agora, com esse novo impulso e esse novo projeto que tramita “silencioso”, faz-se necessário que se abra e seja apresentado à sociedade brasileira, para que sejam discutidos os seus aspectos. Afinal, é um dos instrumentos jurídicos mais importantes, pois é determinante das relações civis. É claro que essa discussão é possível, basta que seja traduzida para uma linguagem que possa ser apreendida pelo cidadão comum.

A parte desse projeto relativa à família já nasceu velha. Está na contramão da história. No limiar do terceiro milênio, em que a família é vista de forma plural, ou seja, em que já se reconhecem várias formas de família, o legislador insiste em nomeá-las legítimas e ilegítimas. Ora, essa é uma nomeação totalmente descabida, retrógrada, que nem mesmo está de acordo com a Constituição de 1988.

Tal projeto desconsidera totalmente a possibilidade de outras formas de família. Não trata nem sequer se refere a questões de procriação artificial. Outra aberração desse projeto está também em seu artigo 1.602, que continua distinguindo e nomeando filhos legítimos e ilegítimos, quando o artigo 227, parágrafo 6º, da Constituição já aboliu essas distinções.

A estrutura do livro de família está ultrapassada. Se aprovado tal projeto, da forma como está, ele já nascerá velho e arcaico. Não somente o jurista, mas também o legislador deverão buscar princípios e conceitos que a contemporaneidade já traduziu para a família. Não entender isso é mesmo ficar na contramão da história.

O direito de família é apenas um exemplo do conservadorismo desse projeto. Isso para não falar sobre outros aspectos determinantes em nossa vida lá tratados, como posse e propriedade. Como bem disse o cientista do direito, João Baptista Villela: “O projeto, tal como está concebido, é uma idéia do século 19. E pretende reger a sociedade brasileira do século 21…”.

A importância de abrir a discussão faz-se no sentido do exercício da democracia. É necessário que o povo tome consciência de que terá um novo Código Civil velho, e possa interferir nos rumos dessa aprovação, inclusive para saber se o dinheiro público gasto ali naquela tramitação será em vão ou se responderá às suas necessidades.

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