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O fim do concubinato

Ascom

Publicado no Jornal Folha de São Paulo no dia 21/5/1995

Apregoa-se hoje em dia, em nome da modernidade, a necessidade de um estatuto para o concubinato, ou seja, a regulamentação das uniões estáveis. Tramita na Câmara dos Deputados o projeto de lei 084/94, que, se aprovado sem emendas, irá revogar a recente lei 8.971/94, a qual tanta polêmica vem despertando desde sua publicação em 29 de dezembro de 94.

O projeto de lei 084/94 -substitutivo ao projeto de lei 1.888/91, de autoria da deputada Bete Arize (PDT-AM)-, aprovado em março de 95 no Senado, vem definir que união estável é o “concubinato more uxório”, público, contínuo e duradouro entre homem e mulher. cuja relação não seja incestuosa ou adulterina”. Em seguida, estabelece normas gerais e específicas dos sujeitos dessa relação, tais como: direitos e deveres entre eles; possibilidade de contrato escrito com registro cartorário; destinação de bens, alimentos e dissolução da sociedade; até mesmo imputando culpa a uma das partes.

A Constituição de 1988 já reconhece como forma de família não somente aquelas constituídas pelo casamento, mas também pela união estável e a comunidade formada pelos país e seus descendentes. Apesar disso, alguns julgadores e juristas têm resistido em conceber a família de forma plural, apoiados em concepções do século passado. Lévi-Strauss e Lacan já mostraram ao mundo, há muitas décadas, que o cerne da família e o laço principal de sua formação estão em uma estruturação psíquica entre os sujeitos envolvidos, onde cada um exerce uma função e tem lugares definidos. O direito já deveria ter entendido isto.

Parece-me que a resistência em rever conceitos tão estabilizados no direito, e tidos como verdade absoluta, tem impedido o avanço da ciência jurídica. Ao ser publicada, a lei 8.971/94, concedendo alimentos e direito de herança aos çoncubinos, por exemplo, vários .juristas se encarregaram de condená-la, execrá-la e até mesmo chamar por sua inconstitucionalidade.

Embora esta lei, do ponto de vista técnico, tenha imperfeições e contradições, é preciso ver que os ataques e o debate instalado transcendem à mera questão técnico-jurídica. Ela incomoda porque interfere em dois setores importantes da vida do cidadão: o econômico e o sexual.

No econômico, a propriedade deixa de ser privada e pode ser dividida com aqueles que não têm o status de esposa(o). No sexual, porque deverão olhar para uma sexualidade concebida culturalmente como ilegítima. A sexualidade será do ordenamento do desejo do próprio indivíduo e ele terá de se haver com isto no contexto da pólis, já que o Estado reconhece que esta é também uma das formas de constituição de família.

A lei 8.971/94 peca não pelas imperfeições jurídicas, mas por demarcar um campo que por sua natureza não pode ser demarcado. Da mesma forma, o projeto de lei 084/94 vem interferir, limitando e demarcando ainda mais um espaço que não pode e não quer se instituir. As relações concubinárias pertencem ao espaço não instituído e estatuí-las, como querem essas leis, talvez seja mais moralista que os efeitos apregoados, como o fim do casamento. Ao contrário, estão acabando é com o concubinato.

No momento em que a tendência mais moderna do direito de família, em todo o mundo, é a intervenção cada vez menor na vida do cidadão, o texto técnico-jurídico tenta fazer uma grave intervenção no campo privado. Além de não instituído, este espaço é e sempre será cheio de contradições. Talvez também seja de sua essência este paradoxo. Mais ainda paradoxal será sua demarcação nos estreitos limites do projeto de lei 084/94, que acabaria transformando o concubinato em casamento.

Ao demarcar o concubinato, acaba-se com a liberdade do cidadão de escolher a forma de constituição amorosa que não seja a instituída pelo casamento. Terá de se inventar uma nova forma não instituída.

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