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O perverso fetichismo da lei e suas consequências no direito familiar

Ascom

Artigo do advogado Rodrigo da Cunha Pereira para o Conjur

O justo e o legal nem sempre são coincidentes. Ao depararmos com esse velho e persistente dilema, melhor seguirmos pelo caminho do justo. Ficar apegado excessivamente à literalidade da lei, pode significar insegurança, ou um fetichismo. Precisamos desvincular esse mistério.

Um dos primeiros juristas a falar e denunciar o fetichismo da lei foi o francês François Geny (1861-1959), que se tornou conhecido pela sua severa crítica ao método de interpretação baseado na exegese de textos legais e regulamentares, valorizando especialmente o costume como força criativa do Direito. Essas noções lançadas por Geny, têm o grande mérito de apontar um perverso sistema de interpretação, que embora tenha evoluído desde Geny, ainda provoca muitas injustiças. Quando ele usou a expressão fetiche e fetichismo da lei, Freud ainda não havia desenvolvido o conceito psicanalítico de fetiche, embora fossem contemporâneos.

A expressão fetichismo foi criada por volta de 1750, e advém da tradução da palavra portuguesa, feitiço (do latim ficticius), traduzida para o francês como fetichisme. Assim, para nós de língua portuguesa, bem que poderíamos entender como feiticismo. Foi o magistrado Charles Brosses (1709-1777) contemporâneo de Voltaire que, observando os povos selvagens africanos notou que eles adoravam pequenos objetos, que chamavam de gru-gru, gri-gri, e os portugueses de feitiço, quando então traduziu a palavra por fetiche. Depois, Auguste Comte trouxe para a sociologia esse conceito para designar a forma mais elementar e primária do pensamento humano em relação às coisas, ou para referir-se à fase inicial das formações sociais.

A psicanálise buscou na antropologia esta expressão, que significa um objeto material venerado como um ídolo. Em 1905, em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud atualizou o termo e concebeu-o inicialmente como uma perversão sexual, caracterizada por uma parte do corpo (pé, seio, cabelo etc) ou um objeto relacionado ao corpo (gravata, calcinha, sutiã, chapéu etc) ser tido como objeto exclusivo de uma excitação, ou prática perversa de atos sexuais. Depois, em seu texto dedicado a Leonardo da Vinci e Gradiva, no inicio do século XX, ele identificou a dimensão fetichista de todas as formas de perversão (exibicionismo, voyeurismo, coprofilia) mostrando que o fetichismo é portador de todos os outros objetos. Em 1914 em Sobre o narcisismo: uma introdução, Freud fala da roupa como um fetiche do feminino. Em síntese, o pai da psicanálise diz que o fetichismo existe em qualquer relação amorosa, e só é patológica quando a fixação do objeto decorre de uma libido infantil.

Jacques Lacan, em seu seminário 4, dando alguns passos adiante na teoria freudiana, reinterpretou o fetichismo como um ponto de uma relação em que o sujeito cria um véu imaginário, e coloca a pergunta: Porquê é ali que o sujeito deve constituir esse mais além? Porque o véu é o mais precioso para o homem do que a realidade? Por que a ordem dessa relação ilusória se torna constituinte essencial, necessário, de sua relação com o objeto? Eis a questão levantada pelo fetichismo. (LACAN, Seminário 4, 1995, P.160) (grifei para destacar aí um encontro do Direito com a Psicanálise). Embora o conceito de fetiche e fetichismo seja anterior à psicanálise, foi ela, especialmente com Lacan, que realçou sua ideia originária, que nos permite trazer para o Direito a importante reflexão sobre a lei como fetiche.

Se fetiche traz o sentido de objeto ou pessoa a que se venera e se obedece às cegas, como um enfeitiçamento, é necessário tirar a regra jurídica (lei) desse lugar mágico e a que todos devem subserviência às cegas, como se ela tivesse o poder absoluto de tudo determinar. Interpretar uma lei sem ponderá-la com outras fontes de Direito, como os princípios constitucionais, equidade, doutrina, jurisprudência, e principalmente os costumes, é dar a ela um status de fetiche, é empobrecê-la.

No Direito de Família, um dos exemplos mais chocantes de fetichismo da lei é o que acontece no sistema de adoção. O artigo 39, § 1º do ECA (A adoção é medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa, na forma do parágrafo único do art. 25 desta Lei) – Estatuto da Criança e Adolescente, lei 8869/90 estabelece que as crianças e Adolescentes só serão adotadas depois de esgotadas as possibilidades de serem acolhidas em sua família biológica. Na prática, dificilmente isto acontece, ou seja, raramente a família extensa adota essas crianças depositadas nos abrigos, que passam a vida esperando alguém da família biológica que nunca chega. Enquanto isto, alguns Magistrados, Membros do Ministério Público, Defensores Públicos, arraigados aos seus dogmas e convicções religiosas particulares, e  acreditando que a família é da natureza e não da cultura, invocam o referido artigo de lei para justificar sua posição. Talvez acreditem na lei como fetiche. E é aí que mora o perigo. Por fetichizarem a lei, cerca de 50 mil crianças e adolescentes continuam vítimas desse fetichismo, sem voz e sem vez: invisíveis. A lei não pode ser fetichizada, sob pena, neste caso, de condenar milhares de crianças e adolescentes a serem vítimas desse fetiche. Eis aí o fetichismo da lei como perversão.

Outro bom exemplo de fetichismo da lei, e que reforça o dognatismo que não deveria mais ter lugar em um ordenamento jurídico que se compreenda o sujeito de direitos como sujeito de desejos, é o artigo 1.727 do CCB. Diz este artigo que as relações não eventuais entre homem e mulher, impedidos de se casarem é considerando concubinato. Isto significa que eventuais direitos daí decorrentes terão que ser extraídos no campo do direito obrigacional. Em outras palavras, não podem ser consideradas famílias. O fetichismo está em considerar que a lei (art. 1727 CCB) vale mais do que a realidade. Em outras palavras, mesmo comprovando que ali há um núcleo familiar, ainda que simultâneo à outra família, ele tem que ser negado, pois a lei vale mais do que a realidade.

Nossas condutas são guiadas e ditadas pelos nossos afetos, que muitas vezes esbarram em proibições legais, como por exemplo, a de não poder casar com duas pessoas ao mesmo tempo. Mas se isto torna um ato-fato jurídico, como uma união estável paralela à outra, ou ao casamento, apegar-se à literalidade da lei, sem interpretá-la no contexto social, de acordo com outras fontes do Direito, especialmente os princípios da dignidade humana, da pluralidade das famílias, da menor intervenção estatal e autonomia privada, é fazer da lei um fetiche. Nem todos os aplicadores da lei são fetichistas, como é o caso no recente julgado do TJBA (há outros também, mas cito só o mais recente), em que um juiz da 2ª Vara Civil da Comarca de Teixeira de Freitas fez uma interpretação da lei sem fetichilizá-la, e atribuiu responsabilidades ao homem que escolheu formar uma família simultânea e, respeitando o contrato de casamento anterior à segunda família, determinou que ele partilhasse da parte dele o patrimônio, ou seja, metade de todo patrimônio para a primeira família, respeitando-se o contrato de casamento e da outra metade é que se atribuiu a metade para a segunda família, ou seja, vinte e cinco por cento para ela (Cf.  www.ibdfam.org.br/publicacoes/newsletter). Isto significa uma ponderação de princípios para impingir responsabilidade a quem escolheu ter uma segunda, terceira, quarta…família simultânea. O STF apreciará este ano, em repercussão geral, a questão das famílias simultâneas, que os fetichistas insistem em chamar de concubinato. Espero, e também as milhares de famílias ainda condenadas à invisibilidade jurídica e social, que os ministros julgadores não se portem como fetichistas neste anunciado julgamento, que envolve muito mais aspectos morais e religiosos. O Estado não pode querer ser regulador do desejo e nem ser o censor da moralidade.

O critério do justo deve estar associado a uma interpretação do Direito em consonância com outras fontes do Direito, que vão muito além da simples regra jurídica (lei). Aplicar o Direito apenas com base na lei é querer fugir das incertezas inevitáveis de qualquer escolha moral.

Rodrigo da Cunha Pereira é advogado e presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), mestre (UFMG) e doutor (UFPR) em Direito Civil e autor de livros sobre Direito de Família e Psicanálise.

Conheça o programa “Diálogos do Direito de Família”

 

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