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TJMG: Afeto como valor jurídico

Ascom

(…) Como se sabe, a filiação sociafetiva é instituto sem correspondente legal, mas acolhido doutrinária e jurisprudencialmente, buscando atribuir aos vínculos fulcrados na afetividade status merecedor da chancela jurídica. O avanço da sociedade e o desenvolvimento de novas concepções de família permitiram a identificação de vínculos familiares além do genético. Nesse contexto é que, no seio das relações familiares, deu-se visibilidade ao afeto e possibilitou-se, não obstante o silêncio da lei, o reconhecimento da filiação socioafetiva, cujo fundamento extrapola o âmbito do vínculo biológico, assentando-se na própria posse do estado de filho, ou seja, na sedimentação da condição de filho expressada por laços de afetividade. A lei atribui ao parentesco psicológico valor jurídico capaz de suplantar o próprio vínculo biológico, acaso comprovados os critérios necessários para o reconhecimento de tal laço sociativo-filial. (TJMG, Apelação Cível 1.0024.10.277014-6/001, Rel Des. Rogério Coutinho, 8ª Câmara Cível, pub. 28/04/2015)

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – NEGATÓRIA DE PATERNIDADE C/C RETIFICAÇÃO REGISTRO CIVIL – EXAME DE DNA – EXCLUSÃO DA PATERNIDADE BIOLÓGICA – COMPROVAÇÃO DO VÍNCULO DE AFETIVIDADE – SENTENÇA MANTIDA – RECURSO NÃO PROVIDO.

1 – O valor absoluto atribuído ao registro só pode ser elidido por consistentes provas de erro ou falsidade, não se admitindo a existência de vício de consentimento decorrente de mera negligência do registrante.

2 – Ainda que excluída pelo exame de DNA a paternidade biológica, acaso demonstrada a existência de vínculo socioafetivo entre as partes, deve ser mantido o nome do genitor no registro de nascimento da menor.

3 – Recurso não provido.

APELAÇÃO CÍVEL Nº 1.0024.10.277014-6/001 – COMARCA DE BELO HORIZONTE – APELANTE(S): W.B.P. – APELADO(A)(S): T.S.P. REPRESENTADO(A)(S) P/ MÃE D.B.S.

A C Ó R D Ã O

(SEGREDO DE JUSTIÇA)

Vistos etc., acorda, em Turma, a 8ª CÂMARA CÍVEL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em NEGAR PROVIMENTO.

ROGÉRIO COUTINHO

RELATOR.

ROGÉRIO COUTINHO (RELATOR)

V O T O

1 – Trata-se de apelação cível interposta por W.B.P. contra sentença que, no âmbito de ação negatória de paternidade c/c exoneração de alimentos proposta em face de T.S.P., representada por sua mãe D.B.S., julgou improcedentes os pedidos iniciais. (f. 114/122)

O apelante pretende seja excluída sua paternidade com relação à filha, ora apelada, à consideração, basicamente, de que foi induzido a erro pela genitora por ocasião do registro de nascimento da menor. Relata que sempre se questionou a respeito da paternidade da criança, dúvida esta sanada quando da realização de exame extrajudicial de DNA, que comprovou a ausência de vínculo de ancestralidade. Destaca que a paternidade socioafetiva não pode prevalecer sobre a biológica, sobretudo porque o registro deve refletir a realidade fática das partes, de modo a preservar, sobretudo, o princípio da dignidade humana e os direitos de personalidade da menor. Pede o provimento do recurso. (f. 126/134)

Sem contrarrazões. (f. 136-verso)

A Procuradoria de Justiça se manifestou pelo não provimento do recurso. (f. 145/149)

É o relatório.

2 – Conheço do recurso, porquanto presentes os pressupostos de admissibilidade recursal.

Cinge-se a controvérsia ao exame da possibilidade de declaração de nulidade do registro de nascimento, após reconhecimento de paternidade voluntário, diante da existência de dúvidas acerca do vínculo biológico entre o genitor e sua filha.

De início, registro de acordo com o art. 320, II, do Código de Processo Civil, os efeitos da revelia não podem ser aplicados se o litígio versar sobre direitos indisponíveis, como no caso.

Sendo assim, para o deslinde da questão, não resta dúvidas de que devem ser analisadas as provas trazidas aos autos pelo apelante.

O art. 1.604 do Código Civil dispõe que “ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro”.

O valor absoluto atribuído ao registro só pode ser elidido por consistentes provas de erro ou falsidade, não se admitindo a existência de vício de consentimento decorrente de mera negligência do registrante.

Outra não poderia ser a interpretação, sob pena de se albergar o voluntarismo de indivíduo que, segundo suas conveniências, decida não mais assumir o ônus da paternidade, prejudicando materialmente e psicologicamente o menor.

Segundo se observa, o autor registrou sua filha livremente, não havendo erro escusável a ser reconhecido, pois como ele próprio admite:

“Tinha certa dúvida em relação à paternidade da apelada, uma vez que a mãe da apelada não tinha um relacionamento estável com apelante, pois antes do nascimento da apelada a sua mãe mantinha outros relacionamentos.” – sic (f. 127/128)

É inegável, portanto, que havia suspeitas a respeito de sua condição paterna desde a gravidez da genitora, ou seja, antes mesmo do registro da criança, tanto é que foi realizado exame de DNA para esclarecer a incerteza.

Ora, a presunção de veracidade dos registros públicos não cede a meras alegações de vício de consentimento se não há demonstração, por provas robustas, de que o pai foi realmente induzido a erro ou coagido a assumir o vínculo filial.

A propósito, permito-me citar julgado do Superior Tribunal de Justiça nesse sentido:

DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. ANULAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO. AUSÊNCIA DE VÍCIO DE CONSENTIMENTO. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO: ARTS. 1.604 e 1.609 do Código Civil.

1. Ação negatória de paternidade, ajuizada em 14.08.2006. Recurso especial concluso ao Gabinete em 14.06.2013.

2. Discussão relativa à nulidade do registro de nascimento em razão de vício de consentimento, diante da demonstração da ausência de vínculo genético entre as partes.

3. A regra inserta no caput do art. 1.609 do CC-02 tem por escopo a proteção da criança registrada, evitando que seu estado de filiação fique à mercê da volatilidade dos relacionamentos amorosos. Por tal razão, o art. 1.604 do mesmo diploma legal permite a alteração do assento de nascimento excepcionalmente nos casos de comprovado erro ou falsidade do registro.

4. Para que fique caracterizado o erro, é necessária a prova do engano não intencional na manifestação da vontade de registrar.

5. Mesmo que não tenha ficado demonstrada a construção de qualquer vínculo de afetividade entre as partes, no decorrer de mais de 50 anos, a dúvida que o recorrente confessa que sempre existiu, mesmo antes da criança da nascer, de que ele era seu filho, já é suficiente para afastar a ocorrência do vício de consentimento – erro – no momento do registro voluntário.

6. No entendimento desta Corte, para que haja efetiva possibilidade de anulação do registro de nascimento, é necessária prova robusta no sentido de que o pai foi de fato induzido a erro, ou ainda, que tenha sido coagido a tanto.

7. Recurso especial desprovido. (REsp 1433470/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/05/2014, DJe 22/05/2014)

Passadas as considerações a respeito da higidez do registro de nascimento da menor e partindo do pressuposto que é incontroversa a verdade biológica, em razão do exame negativo de DNA juntado aos autos, resta saber se há ou não a constituição do parentesco afetivo a justificar, ainda que por outro fundamento, a manutenção da condição do autor de pai de T. (f. 10)

Como se sabe, a filiação sociafetiva é instituto sem correspondente legal, mas acolhido doutrinária e jurisprudencialmente, buscando atribuir aos vínculos fulcrados na afetividade status merecedor da chancela jurídica.

O avanço da sociedade e o desenvolvimento de novas concepções de família permitiram a identificação de vínculos familiares além do genético.

Nesse contexto é que, no seio das relações familiares, deu-se visibilidade ao afeto e possibilitou-se, não obstante o silêncio da lei, o reconhecimento da filiação socioafetiva, cujo fundamento extrapola o âmbito do vínculo biológico, assentando-se na própria posse do estado de filho, ou seja, na sedimentação da condição de filho expressada por laços de afetividade.

A lei atribui ao parentesco psicológico valor jurídico capaz de suplantar o próprio vínculo biológico, acaso comprovados os critérios necessários para o reconhecimento de tal laço sociativo-filial.

Pretende-se, dessa forma, proteger a dignidade e imagem do filho perante a comunidade e preservar a formação de sua identidade e definição de sua personalidade.

Firme nesses pressupostos, entendo que a sentença merece ser confirmada, pois comprovado o desenvolvimento de relação paternal socioafetiva entre o apelante e a menor apelada.

No depoimento da apelada, colhido sob o crivo do contraditório, é esclarecido que o autor W.B.P. é a única referência de pai que possui, destacando, inclusive, sua perplexidade com a perspectiva de mudança do nome genitor em sua certidão de nascimento:

“(…) que conta com 12 anos de idade (….); que tomou conhecimento que seu pai biológico era C., com 11 anos de idade; que teve como pai registral o Sr. W.B.P., pessoa que vivia em união estável com a mãe da depoente quando de seu nascimento; que morou em companhia de W. e sua genitora por 5 a 6 anos, pessoa que considera como pai; que a depoente não gosta de C., e pelo contrário ama W.; que não tem contato com C.; já com W. teve contato com o mesmo até os 12 anos de idade; que deseja que seu pai registral W.B.P. seja seu pai definitivo, reconhecendo a paternidade socioafetiva; que enfatiza que não quer que o nome de seu pai seja mudado, desejando, inclusive, a saber porque W. quer tirar seu nome de sua certidão de nascimento?; que viu e teve contato com W. em setembro de 2012, quando passaram juntos um dia, no BH Shopping, o qual lhe deu um presente (roupas) e também R$ 100,00 para lhe ajudar em suas despesas; que além do contato acima mencionado não teve outros com W. a partir de setembro de 2012, nem mesmo por computador, ou internet ou telefone, isto porque sua genitora D. não deixou (…)” – f. 93/94.

Como se vê, o apelante, até pouco tempo, desempenhava o papel paterno por força dos laços de afeto que nutria pela criança, vínculo este desfeito somente após as interferências da genitora, que proibiu o contato entre as partes.

Por outro lado, o relatório social é contudente em afirmar o amor e carinho do autor pela filha, sendo certo que o apoio material e moral perdurou mesmo após a separação do casal, situação que, segundo afirmou o genitor, pretende manter mesmo se retirado seu nome do registro civil de nascimento. (f. 64/67)

Tais evidências, a meu ver, autorizam a conclusão de que há intensa ligação de afeto entre as partes, circunstância que, por si só, legitima o reconhecimento da paternidade socioafetiva diante da existência de provas seguras de que o relacionamento entre as partes sempre foi mantido na condição de pai e filha.

3 – Assim, nego provimento ao recurso.

O SR. DES. PAULO BALBINO (REVISOR) – De acordo com o(a) Relator(a).

A SRA. DESA. ÂNGELA DE LOURDES RODRIGUES – De acordo com o(a) Relator(a).

SÚMULA: “NEGARAM PROVIMENTO.”

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