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É necessário ser fiel?

Ascom

Publicado no Jornal Folha de São Paulo no dia 1º/1/1996

A lei nº 9.278 de 10/5/96 vem, mais uma vez, tentar regulamentar as relações concubinárias. Essa lei tem origem no projeto nº 1.888 de 91, da deputada Bete Azize (PDT-AM). Após anos em tramitação, o projeto original sofreu emendas, substitutivos e, com alguns vetos, foi aprovado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso.

Como um sintoma, essa lei parece refletir a desorganização do Congresso e do próprio presidente da República, aprovando um projeto desconexo com a recente lei 8.971/94, que trata sobre o mesmo assunto. Ela repete erros, incorreções e incoerências com alguns institutos de direito e família. Instalou-se, então, uma confusão jurídica que os tribunais, certamente, levarão anos para desfazer.

O artigo 1º já começa instalando polêmica quando define união estável, termo substituto do estigmatizante “concubinato”: “É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de família”. Ao contrário da lei anterior (8.971/94), não deixa claro se os sujeitos dessa relação devem ser desimpedidos. Deixa em aberto o entendimento de que até pessoas casadas podem receber proteção do Estado para constituição dessas uniões. Deixa margem à interpretação de que o ordenamento jurídico brasileiro admite a poligamia.

Para aumentar a confusão, o artigo 2º suprimiu de seu projeto original a expressão “fidelidade” por “respeito e consideração mútuos”. Ora, será que essa expressão pressupõe fidelidade ou essa é pressuposto apenas do casamento (art. 231, CCB)? Em alguns aspectos, repete a lei 8.971/94 (art. 7º), em outros, complementa (art. 5º, 9º…), e, em outros, contraria (art. 1º). Fica também a dúvida se surtirá efeitos somente para as relações nascidas a partir do dia 14/5/96.
A nova lei vem também cercear a liberdade dos sujeitos na escolha do tipo de relação amorosa. Agora, mesmo não querendo, esses sujeitos receberão ditatorialmente, do Estado, as regras de sua relação-convivência amorosa. Apesar disso, a nova lei, em seu espírito, é bem intencionada. Esse bom espírito é o de corrigir e evitar injustiças. Pena que não soube traduzir direito essa boa intenção!

De qualquer forma, não obstante a confusão jurídica que vem instalar e suas imprecisões técnicas, ela tem o grande mérito de derrubar a resistência dos tribunais em reconhecer esse assunto como família. Traz avanço: transfere de vez a matéria relativa ao concubinato-união estável do campo do direito das obrigações para o direito de família. Agora há o reconhecimento expresso do Estado de que essas relações são de família e como tais devem ser tratadas.

Mas, para além do reconhecimento, está a regulamentação. Aí está o excesso e a contradição. Essas relações pertencem ao campo do não-regulamentável ao espaço do não-instituído. Por isso, qualquer estatuto que se queira fazer o concubinato esbarra em seu paradoxo, mas que é mesmo de sua essência: busca a proteção do Estado, mas não comporta regulamentação. Não sendo regulamentável, pode ocasionar injustiças.

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