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Famílias globalizadas, direito internacional privado e sequestro internacional de crianças

Ascom

Artigo publicado no Conjur

No mundo globalizado, facilitado pela internet e aplicativos de encontros, as relações afetivas têm se tornado cada vez mais internacionalizadas.

Assim, a forma de constituição das famílias tem ampliado a sua territorialidade. E, como o amor às vezes acaba, as questões pessoais e patrimoniais decorrentes do fim da conjugalidade, especialmente quando daí se formou também uma família parental, trazem adversidades muito maiores que as separações entre brasileiros vivendo em território brasileiro.

Obviamente não há uma legislação internacional que possa ser aplicada a todos os casos. A solução está na invocação das regras do Direito Internacional Privado (DIP) e das Convenções Internacionais, às quais o Brasil é signatário.

A partir da Constituição de 1988, importantes Tratados Internacionais, inclusive sobre Direitos Humanos, foram ratificados pelo Brasil. Um dos mais utilizados no Direito de Familia é a Convenção de Haia, que abrange dentre outras matérias, sequestro internacional de crianças, cooperação em matéria de adoção internacional, cobrança internacional de alimentos etc.

Uma das falhas em nosso ordenamento jurídico é o fato, inexplicável, de que o Brasil ainda não ratificou a Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos das Pessoas Idosas, PDC 863/17. Tal convenção amplia a garantia e efetividade dos direitos fundamentais, como mais uma ferramenta protetiva, gerando respeito e dignidade a essas pessoas, que já deram sua parcela de contribuição à sociedade.

Reforma do Código Civil

A reforma do CCB, cujo anteprojeto elaborado por uma comissão de juristas, foi apresentada ao Senado em 16/4/24, não fez muitos avanços nesse sentido. E nem poderia. Mas, introduziu um artigo significativo acerca de mecanismos de efetivação dos tratados em que o Brasil é signatário:

Artigo 11, § 1º os direitos e princípios expressos neste Código não excluem outros previstos no ordenamento jurídico pátrio e nos tratados internacionais dos quais o País é signatário, para a proteção de direitos nas relações privadas, e dos direitos de personalidade, inclusive em seus aspectos decorrentes do desenvolvimento tecnológico.

Uma das questões significativas enfrentada pelo DIP é o multiculturalismo. Por exemplo: um homem casado com mais de uma mulher em país cuja legislação assim o permite, vem morar no Brasil. Ele poderia registrar seu casamento aqui com suas duas ou mais mulheres?

Um casal homoafetivo brasileiro, que trabalha em um país que ainda não reconhece o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o que deveria fazer para valer seu casamento naquele país? Ou, um casal brasileiro que vive em união estável, e se muda para um país em que essa forma de constituir família não é reconhecida. Como fazer valer as regras de onde a união foi estabelecida?

São apenas exemplos para demonstrar os possíveis problemas decorrentes da diversidade de culturas e de ordenamentos jurídicos. A resposta não é simples

Algumas das soluções para os exemplos acima, e tudo mais que envolva famílias internacionalizadas, está na Lei de Introdução ao Código Civil, que com Lei 12.376 de 2010, passou a ser chamada de Lei de Introdução às normas do Direito brasileiro, Lindb, que deve ser conjugado com os Tratados Internacionais.

O DIP tem um leque e cardápio amplos. Por exemplo, o registro de casamento estrangeiro no Brasil, ou o registro de casamento brasileiro no consulado de outro País, homologação de sentenças estrangeira etc. Em 2021, a Resolução CNJ 449, alterando a Resolução 155/20212, simplificou a forma de registros e traslados de certidão de pessoas no exterior. Foi um importante avanço, inclusive disciplinando sobre aspectos civis de sequestro internacional de crianças previstas na Convenção de Haia.

Mas as questões mais difíceis, e problemáticas do DIP, são aquelas que envolvem guarda e convivência de crianças e adolescentes. É aí que muitas vezes começa o inferno parental. Um dos pais, com ou sem motivos, muda de país, levando consigo o filho comum do casal, cerceando ou dificultando a convivência.

Para esses casos, tem-se a Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, ratificada, pelo Brasil, pelo Decreto 3.413 /2000. Seu objetivo é assegurar o retorno imediato de crianças ilicitamente transferidas de um país para o outro.

Os exemplos mais comuns de sequestro são: 1) quando a criança é levada por um dos pais, com autorização judicial, para fora do país para passar férias e não mais retorna após o período previsto, modalidade conhecida como retenção; 2) quando um dos pais subtrai a criança do país de forma ilícita, ou seja, sem autorização da Justiça ou do outro genitor, conhecida como remoção.

O CPC/2015 inovou ao sistematizar nos artigos 21 a 41 as regras dessa cooperação jurídica internacional. Afinal o objetivo da Convenção de Haia, conforme se extrai de seu artigo 1º, é repor à criança seu status quo, preservando o foro do país de sua residência habitual para julgar pedido de guarda, por configurar o juízo natural.

Pressupõe-se que seja aí o melhor lugar para serem discutidas as questões a ela referentes e mais fácil a colheita de provas. É o que estabelece os artigos 16, 17 e 19 da Convenção de Haia (cf. meu livro Direito das Famílias. Ed. Forense – 5ª Edição, pag.558)

A polêmica e dificuldade da aplicação dessa regra da Convenção é compatibilizá-la com o princípio constitucional brasileiro do melhor interesse da criança e adolescente pós retorno da criança à sua residência habitual.

Há situações que remete a perigos e ameaças de natureza complexa e prolongada, dentre elas, a submissão a danos “de ordem física ou psíquica, bem como exposição, de algum modo, à “situação intolerável”.

Utilizando a máxima principiológica, apesar do escopo da Convenção não se voltar a debater o direito de guarda da criança, mas, sim, a assegurar o retorno da criança ao país de residência habitual, essa presunção de retorno da criança não é absoluta.

Aliás, uma vez provada a existência de possíveis danos à criança, o julgador, ou a autoridade, tem a discricionariedade de formar seu convencimento no sentido do retorno ou da permanência da criança no país onde foi subtraída.

ADI 4.245

É neste sentido que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) a ADI 4.245. Ela questiona atos do Congresso e do presidente da República que ratificaram e promulgaram a Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, justamente por entender que não ser trata de todos e quaisquer casos o retorno imediato.

Precisa ser avaliada cada situação, não somente fazer valer a letra fria da Convenção. Afinal estamos tratando sobre pessoas vulneráveis e em desenvolvimento. Assim, são os princípios constitucionais de cada país que podem dar mais vida e vivacidade à frieza da lei.

O justo e o legal nem sempre são coincidentes. Ao depararmos com esse velho e persistente dilema, melhor seguirmos pelo caminho do justo. Ficar apegado excessivamente à literalidade da lei, pode significar insegurança jurídica, ou um fetichismo da lei, no caso, de uma Convenção Internacional.

Fetiche traz o sentido de objeto ou pessoa a que se venera e se obedece às cegas, como um enfeitiçamento. É necessário tirar a regra jurídica (lei) desse lugar mágico e a que todos devem subserviência às cegas, como se ela tivesse o poder absoluto de tudo determinar.

O Direito é muito mais que a lei. Interpretar uma lei sem ponderá-la com outras fontes de Direito, como os princípios constitucionais, equidade, doutrina, jurisprudência, e principalmente os costumes, é dar a ela um status de fetiche, é empobrecê-la.

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