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O velho Código Civil

Ascom

Publicado no Jornal O Globo no dia 25/11/1999

Um dos mais importantes projetos de lei do fim deste século está passando despercebido da população e está prestes a ser votado na Câmara dos Deputados, embora esteja na contramão da História. A aprovação do projeto do “novo-velho” Código Civil significará irresponsabilidade e descompromisso de nossos parlamentares com o povo brasileiro. O projeto, que tramita há três décadas no Congresso, regulamenta as relações civis, isto é, trata das questões da vida cotidiana, como relações de consumo, posse, propriedade, contratos, sucessão hereditária, família.

Sua estrutura organizacional data de quase meio século e pretende reger as relações civis e familiares do próximo século. Em especial, a parte da organização jurídica sobre a família é totalmente ultrapassada e equivocada. Sustenta-se em concepções morais do século passado e da época em que foi concebido o Código em vigor. Todos sabemos que o atual Código Civil está ultrapassado, mas substituí-lo por outro de qualidade inferior e que não responde à nossa realidade é equívoco ainda mais grave.

O projeto original sofreu alterações e até tentou-se adequá-lo à Constituição de 1988. Em vão. Apesar dos hercúleos e bem-intencionados esforços de seus atuais mentores, o respeitável jurista Miguel Reale, o ministro Moréia Alves e o senador Josaphat Marinho, o projeto especialmente a parte de família, repita-se, mantém-se velho, arcaico e absurdamente em desacordo com a Constituição, com as novas representações sociais da família e evolução do pensamento científico e tecnológico. Paralelamente, ou, paradoxalmente, o presidente da República encomendou, sob a batuta do renomado jurista Sílvio Rodrigues, uma Consolidação das Leis de Direito de Família. Outro grupo de renomados juristas está organizando um projeto de um Código de Família. Que confusão! Sinal dos tempos?

Estiveram reunidos em Belo Horizonte, de 30/10/99, no II Congresso Brasileiro de Direito de Família, o maior evento desta área, organizado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e pela OAB-MG, cerca de 700 operadores de direito, que trabalham com questões jurídicas sobre família. Advogados, juízes, promotores, psicólogos, assistentes sociais, os maiores juristas e pensadores do direito de família debateram os temas e as dificuldades atuais de se ordenar juridicamente as relações de família diante do fenômeno da globalização, de um novo discurso sobre a sexualidade e as novas representações sociais da família. Este fórum de debate foi unânime em concluir pela inadequação do projeto do Código Civil prestes a ser aprovado.

Apenas para se ter uma idéia do absurdo proposto à aprovação, mencione-se que o projeto corrobora a idéia de que a família só se constitui pelo casamento (art. 1.510); há dispositivos reproduzindo a velha fórmula do filho legítimo e ilegítimo (art. 1.560), apesar da proibição constitucional dessa discriminação; o princípio da culpa pela dissolução do casamento continuará em vigor. Será que existe mesmo um culpado pelo fim da conjugalidade? Destes poucos exemplos pode-se verificar que o equívoco não está apenas em certos artigos, mas na concepção. O relator do Livro de Família, deputado Antônio Carlos Biscaia (PT/RJ), tentou salvar o projeto na parte que lhe coube. Fez o que pôde. Mas seu trabalho encontrou limites regimentais.

É importante que nós, cidadãos, saibamos como esse projeto tramitou no Legislativo. O interesse em jogo em sua aprovação parece estar desviado do interesse do povo brasileiro e da comunidade jurídica. Aliás, não conheço quem esteja a favor da aprovação deste “novo” Código Civil. Sabe-se, apenas, dos interesses do presidente do Senado, que pressiona o relator-geral, deputado Ricardo Fiúza (PFL). Será que a mola propulsora da aprovação deste projeto é algo particular, uma questão narcísica de seus mentores?

Os interesses do povo, parece-me, não estão aí representados. E a ética destes parlamentares, como fica? Será que os deputados o aprovarão por “aclamação” como fizeram os senadores há dois anos? “Pai, perdoai-os, pois eles não sabem o que fazem”.

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